domingo, 14 de agosto de 2011

A esquecida arte da memória - como lembrar



Revista Veja - por Letícia Sorg
Não faz muito tempo, conseguía­mos lembrar números de te­lefone. O da mãe, o do melhor amigo, e, quem diria, até o do parceiro. De uns anos para cá - desde a popularização do celular -, tal capacidade de lembrar sequências de oito dígitos ou mais caiu em desuso. Temos sorte se ainda guar­damos na mente algum número da era pré-celular, mas é pouco provável que nos demos o trabalho de memorizar qualquer novo contato. E vivemos bem até o dia em que perdemos nosso aparelho - e nos 
sentimos paralisados.
Para nós, seres dependentes do celular até para ligar para a própria casa, nada mais natural do que se espantar com um indivíduo capaz de decorar o nome e a aparência de uma centena de pessoas, a sequência de centenas de cartas de baralho ou uma extensa lista de números aleató­rios. Seus feitos extraordinários nos fazem olhá-lo como se fosse uma espécie de má­gico, vidente ou superdotado. E pensamos: o que essa pessoa tem que eu não tenho?
O jornalista americano Joshua Foer, de 28 anos, fez essa pergunta quando, em .2005, assistiu ao Campeonato Americano de Memória para escrever uma reporta­gem. Perguntou para vários competidores como eles conseguiam lembrar tanta coisa e recebeu quase sempre a mesma resposta: "Qualquer um pode fazer isso!". Foer ficou 
ressabiado. Era esquecido, frequentemen­te não sabia onde havia deixado a chave do carro e tinha até dificuldade de lembrar a data de aniversário da namorada. Como poderia virar um elefante, assim, de uma hora para outra?
"O campeonato de memória nos parece tão inacreditável porque estamos acostu­mados a não lembrar", diz Foer. "Dependemos tanto da tecnologia que não confiamos em nossa memória." Mas o jornalista decidiu testar a sua e narrar os resultados no livro A arte e a ciência de memorizar tudo: memórias de um campeão de memória (Nova Fronteira), que será lançado em agosto no Brasil.
Com a ajuda de um dos recordistas mun­diais, o britânico Ed Cooke, Foer começou a exercitar sua memória uma hora por dia. E, para lembrar mais do que míseros números de telefone, recorreu a técnicas cria­das quando, sem computador ou mesmo livros, as pessoas precisavam memorizar poemas extensos, discursos inteiros. Uma delas é o "palácio da memória", criado pelo grego Simônides no século VI antes de Cristo. Usada para memorizar séries de elementos, a técnica exige que a pessoa "espalhe" os itens de que quer se lembrar por um lugar que lhe seja familiar, como a própria casa. De preferência, imaginando situações bem estapafúrdias para que eles estejam lá - o que aumenta a eficácia do exercício.
Sem nenhum treinamento ou esforço, somos capazes de memorizar de cinco a nove elementos - na média, sete -, como sugeriram os estudos de George Miller, na década de 1950. Depois de um ano praticando, Foer conseguiu se lembrar de 107 nomes e sobrenomes de pessoas (e associá-Ios às fisionomias) e 87 dígitos. O desempenho lhe deu o título de campeão americano e um final apoteótico para seu livro, que deverá virar filme. Mas todo o esforço não o tornou menos esquecido.
Pouco depois da competição, Foer foi a um jantar e voltou de metrô para casa - esquecendo que fora de carro. Teria ele perdido sua capacidade de lembrar? Não. Foer continuava tão bom quanto antes para memorizar cartas de baralho, sequência de números - entre as quais, sabiamente, a data de aniversário da na­morada. Mas a memória não é uma espé­cie de músculo que, exercitado, torna-se forte para todas as tarefas. Não há uma técnica mágica que nos faça lembrar tudo e nos liberte dos dados guardados em celulares, computadores e no bom e velho papel. Lembrar exige um esforço e uma disciplina que, muitas vezes, não estam os dispostos a despender.
"Memorizar detalhes como números de telefone e de cartões de crédito, aniversá­rios e a data exata de acontecimentos não é mais necessário", diz o psicólogo Anders Ericsson, professor da Universidade da Flórida, Estados Unidos, e um dos princi­pais estudiosos da cognição humana. "Da mesma forma que o surgimento dos livros nos dispensou de ter de memorizar os tex­tos sagrados, palavra por palavra." Tudo pode ser resumido ao grau de atenção que damos a algo. "Só lembramos aquilo a que prestamos atenção", afirma Ed Cooke. Isso significa que, se não fizermos um esforço consciente para notar uma informação, dificilmente vamos guardá-Ia na memória. É um desafio e tanto num mundo cada vez mais cheio de informações que disputam nossa atenção. Para tentar evitar as distrações, Foer treinava usando fones de ouvido e óculos pintados de preto, que barravam sua visão lateral.
"Continuamos com a mesma capacida­de de memorizar, mas me preocupa esse costume de fazer várias tarefas ao mesmo tempo", diz o psicólogo Alberto Dell'Isola, único brasileiro listado noranking mun­dial de recordistas de memória. "Nosso cérebro não está preparado para isso e per­demos informações sem nem perceber. É o que acontece quando dirigimos falando ao celular: nem percebemos que demoramos a reagir à abertura do sinal." Como não va­mos sair por aí com fones e cabresto, podemos ao menos tentar desligar os alertas de recebimento de e-mail e os programas de bate-papo se quisermos nos concentrar numa só tarefa. Mas isso não é garantia de foco. Na internet, cada informação pode levar a uma nova. São tantas as páginas que dificilmente nos fixamos a ponto de memorizar seu conteúdo.
Quando sabemos que podemos voltar a qualquer momento para checar um dado, como no caso da navegação pela internet, ficamos menos preocupados em memorizar a informação em si e mais concentra­dos em saber como buscá-Ia novamente. Essa é a conclusão do estudo da psicóloga Betsy Sparrow, da Universidade Colúm­bia, em Nova York, publicado na última edição da revistaScience. Na pesquisa, Betsy afirma que, cada vez mais, vemos o Google e outros mecanismos de busca como uma extensão da própria memória. Isso não quer dizer, porém, que nosso cé­rebro tenha mudado ou se tornado incapaz de armazenar informações. O experimento de Joshua Foer é uma prova em contrário. Quer dizer apenas que nos adaptamos às novas ferramentas. ''Antes sabíamos que as pessoas e os livros armazenavam algu­mas informações. Hoje esse papel cabe ao computador", diz Betsy. "A diferença é que as pessoas estão muito mais conscientes de que dependem do computador, mais do que quando dependiam de outras pessoas. E, por isso, estão mais preocupadas."
Ed Cooke defende que nossa cabeça está ficando mais oca à medida que memo­rizamos menos informações. Ele revive, diante do computador, a frustração de Só­crates quando do surgimento da escrita. Em Fedro, o pensador grego sugere que a escrita é apenas uma sombra de sabedoria. Sócrates tem razão sobre o valor da me­mória: se o objetivo é atingir a excelência em alguma área ou criar algo novo, ela ainda é necessária. "Para contribuir de forma criativa, é preciso saber o máxi­mo possível sobre a área, saber se alguém já pensou o mesmo antes", diz Ericsson. Cooke e Foer argumentam que ser criativo depende de estabelecer relações originais entre elementos conhecidos. E, quanto mais elementos conhecidos, maiores as chances de ter uma boa ideia.
A pesquisadora Betsy Sparrow discor­da que, ao delegar a tarefa de lembrar ao Google, estejamos pondo em risco nossa criatividade. "Quando procuramos algo on-line, é comum abrirmos janelas para assuntos que nos pareçam interessantes", afirma. "Posso começar procurando um artigo sobre psicologia e terminar em um texto sobre física. Mas, mesmo que não consiga reproduzir o que li sobre física, pode ser que isso seja proveitoso de alguma maneira." Em seu novo estudo, Betsy quer avaliar quanto as informações que não conseguimos resgatar ficam gravadas em nosso inconsciente - e podem nos ajudar.
A necessidade de, hoje, memorizar in­formações à moda antiga foi questionada pelo escritor americano Steven Johnson em um artigo intitulado "Yes, people still read, but now it's social"("Sim, as pessoas ainda leem, mas agora socialmente"), pu­blicado no ano passado. Para Johnson, não é coincidência que as principais inovações científicas e tecnológicas tenham surgido nos centros urbanos, superpopulosos e dispersivos. Elas dependeriam mais do in­tercâmbio de ideias que da leitura solitária e concentrada.
Talvez essa seja uma das razões pelas quais, depois de um ano treinando, Joshua Foer quase não use, em seu dia a dia, as téc­nicas que aprendeu. Uma de suas poucas aplicações é memorizar as falas das pales­tras que começou a fazer depois do suces­so de seu livro. Mas, numa festa, prefere anotar no celular os números de telefone novos, como praticamente todos fazemos. Apesar disso, Foer diz que o treinamento não foi em vão. Ele afirma que as técnicas são divertidas e estimulam a criatividade, porque envolvem criar associações - na maioria das vezes engraçadas - entre ele­mentos que nada têm a ver entre si. Por isso, Foer diz que as escolas não fariam mal se dedicassem, talvez, duas horas para ensiná-Ias aos alunos. O principal benefí­cio da experiência, segundo ele, foi tomar consciência da importância de prestar atenção. "Aprendi a ser mais atencioso, a notar o mundo a minha volta", escreve Foer. "Lembrar só é possível quando de­cidimos prestar atenção."
É uma regra que não vale só para se­quências de números e cartas de baralho, mas para a vida. Se passamos pelos fatos sem prestar atenção, eles não ficam registrados em nossa memória. Temos a impressão de que todos os dias são iguais e de que o tempo está voando. Se, por outro lado, fazemos um esforço para notar os fatos, podemos con­seguir resgatá-los da memória. E, quanto mais lembranças temos, maior a sensação de que o tempo demorou a passar. Para valer a pena, segundo Sócrates, uma vida precisa ser memorável. Isso não mudou com o tempo nem com a tecnologia.
• Memorizar é a arte de prestar atenção
O jornalista conta como conseguiu se tornar campeão americano de memória e o que aprendeu em sua jornada contra o esquecimento.
Joshua Foer tinha 23 anos quando foi assistir ao Campeonato Americano de Memória para uma reportagem. Im­pressionado com as habilidades dos chamados "atletas mentais", decidiu desafiar os limites da própria memória. No livro A arte e a ciência de memorizar tudo (Nova Fronteira), ele conta como conseguiu me­morizar sequências de números, nomes e cartas de baralho e tenta explicar por que lembramos algumas informações e esquecemos outras.
ÉPOCA - Depois de um ano treinando, você venceu o Campeonato Americano de Memória e até foi ao Campeonato Mundial, Como foi essa experiência?
Joshua Foer - Foi totalmente maluco. Sou um jornalista, me envolvi completamente com a história por curiosidade jornalistica, e isso acabou ganhando mais importância. Saí do ponto em que ouvi que "qualquer um pode fazer" até me tornar, de fato, um campeão de memória. Nunca imaginei que isso fosse acontecer. Originalmente, estava pesquisando a respeito de memó­ria e escrevendo sobre outras pessoas que faziam parte dessa estranha cultura da memorização. Entrevistei várias delas no Campeonato Mundial. e isso realmente aguçou minha curiosidade.
ÉPOCA - Há uma ideia de que é preciso ser nerd ou superdotado para participar de uma competição como essa?
Joshua Foer - Eu tinha esse mesmo tipo de pre­conceito quando fui cobrir o evento. Achei que fosse encontrar vários nerds, pessoas muito estranhas. E fiquei surpreso porque era um grupo bastante diverso, com pes­soas de várias idades, com várias profis­sões, surpreendentemente normais.
ÉPOCA - Qual é a função desse tipo de campeonato hoje em dia, quando a ca­pacidade de memorizar informações deixou de ser necessária por causa da tecnologia?
Joshua Foer - Demonstrar do que nossa memó­ria é capaz e canalizar certos instintos, mostrando que certas habilidades são inatas, inerentes a todos nós, e que basta decidirmos usá-Ias.
ÉPOCA - Com o computador e o celular, não precisamos saber de cor muitas coi­sas, mas precisamos, pelo menos, saber como encontrá-Ias. Isso não quer dizer que continuamos usando a memória, mas de um jeito diferente?
Joshua Foer - É verdade, mas é cada vez menos verdade. Parte da história que conto no livro é a mudança da noção de erudição. No passado, as pessoas tinham de ter as informações na própria mente porque não tinham livros para consultar. E então aconteceu uma mudança: com a invenção da imprensa escrita, não era mais preciso internalizar a informação, mas saber como encontrá-Ia. Argumento que hoje a noção de erudição está mudando novamente, indo para um caminho em que não é mais necessário nem saber como encontrá-Ia. Cada vez mais os mecanismos de busca podem encontrar para você.
ÉPOCA - Isso quer dizer que a memori­zação deixou de ser uma virtude, uma necessidade? Ela perdeu o valor?
Joshua Foer - Na Idade Média. as pessoas com as melhores memórias eram considera­das as mais geniais. Ninguém diria algo assim hoje - ainda bem. Mas de onde ti­ramos nossos valores? De onde tiramos nossos julgamentos? Eles dependem das informações que interiorizamos. É preciso, portanto, recuperar parte do va­lor que já foi atribuído a essa capacidade humana.
ÉPOCA - Em seu livro, você fala de como a memória pode alterar nossa percepção de tempo. Como isso ocorre?
Joshua Foer - Temos de sair de casa e pensar em fazer algo novo. Porque essa experiência nova será diferente do que fazemos normal mente e, por isso, será memorável. Com ela, minha vida será maís rica.
ÉPOCA - Seu treinamento para memo­rizar informações tornou sua vida mais plena?
Joshua Foer - Não diretamente. Mas entender o que torna as coisas memoráveis foi útil para saber o que devo ter em mente.
ÉPOCA - Como esquecer menos num mun­do cada vez mais cheio de informações?
Joshua Foer - É importante prestar atenção. Cada vez mais temos nossa atenção dis­persada de diferentes maneiras e não paramos para pensar nos custos disso. Acredito que um deles seja lembrar me­nos. A arte da memória é a arte de pres­tar atenção. Se dividimos nossa atenção, somos menos capazes de lembrar.
ÉPOCA - Como fazer para prestar mais atenção?
Joshua Foer -  A única maneira que conheço é manter essa ideia em mente. repetir a si mesmo para prestar atenção. Tento me manter no momento presente. Há quem faça meditação e tenha outras técnicas, tudo o que sei é que você deve lembrar a si mesmo. Não estou nem perto de ser bom nisso, mas continuo tentando.

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